Imagem meramente ilustrativa retirada do Google Imagens |
A coleção de rendas de minha mãe deve ter
começado assim, naturalmente, com as sobras dos rolos comprados para nossos
vestidos de meninas, ou para seus vestidos de mulher elegante. Minhas irmãs e
eu tínhamos roupas cobertas de rendas. Nossas camisolas eram enfeitadas com
rendas, nossos lençóis e fronhas, as colchas de cama, até as meias e luvas
levavam algum debrunzinho de renda. As toalhas de mesa em nossa casa eram
verdadeiras amostras dessa arte, cada qual mais valiosa. Tudo impecavelmente
lavado, quarado, passado na goma e no ferro de engomar por uma especialista,
com um ar de peça de enxoval.
Lembro de um vestido meu, feito para o aniversário de minha irmã, todo em aplicações de rendas, desde a gola até a barra, sobre organdis com nervuras, e até a anágua, tudo era de rendas feitas à mão pelas mais hábeis rendeiras de Fortaleza e redondezas. Por baixo da saia ficava uma armação de arames em círculos recobertos, claro, de rendas. Lá ia eu, magricela, olhos grandes e tristes, tranças e franja, as pernas finas saindo de uma saia bojuda como uma xícara emborcada, sentindo o prazer do movimento que fazia a saia, e orgulho da alvura das rendas, me sentindo talvez uma princesa em tão ataviados trajes.
Nossa casa estava sempre de portas abertas às rendeiras, elas vinham às vezes de longe para vender suas rendas, e mamãe comprava os acervos às vezes completos. Eram verdadeiras obras de arte aquelas rendas. As rendeiras teciam maravilhas de delicadeza e equilíbrio, em simetrias tão perfeitas como a das estrelas. E mamãe ia guardando. Também havia uma conta aberta numa loja de rendas, onde a costureira-mor de mamãe retirava rolos e rolos de rendas para a execução de nossos vestidos, também para alguns vestidos de mamãe, de uma tia, uma sobrinha, sempre havia motivo para uma renda ali, acolá. Um debrum, um acabamento da saia, as mangas, um colete de rendas, uma cortina, um véu de missa, uma varanda de rede, sempre havia lugar para as preciosas rendas brancas.
Não eram apenas as rendas de filé, os labirintos, as rendas de almofada, ou bilros, tecidas pelas mãos exímias daquelas mulheres jovens ou velhas, que moravam em casas muito pobres, e aprendiam desde meninas com suas mães e avós a arte da renda. Mal eram alfabetizadas e sabiam realizar complexas operações de matemática e geometria, em obras primas que vendidas davam só para o sabão e o querosene. Havia caríssimas rendas francesas, belgas, de Flandres, Bruxelas, e portuguesas, compradas nas lojas ou em algum galego especializado. Nesse caso, eram brancas, beges ou pretas. Umas tão finas que criavam a sensação de pele.
Umas tão belas que nos deixavam em suspenso.
Tal variedade foi obrigando mamãe a organizar seu acervo em caixas. A caixa das
rendas francesas, a de rendas baratas, a de rendas em rolos, a caixa das
pretas, a de rendas em seda, a de aplicações... E ela sabia a origem das
rendas, de cabeça, não anotava nada. Sabia onde tinham sido produzidas, e de
quem as comprara. “Esta aqui foi uma moça de Limoeiro do Norte”. Sabia o ponto,
a técnica usada, e até alguns nomes como fundo-de-tigela, costela-de-noiva,
flor-de-goiaba, ou orelha-de-burro.
Durante anos foi seu divertimento reorganizar as rendas. Não mais pela nacionalidade, e sim pela antiguidade, aqui as mais novas, ali as mais antigas. Não mais pela antiguidade, mas pelo valor, aqui as mais preciosas, acolá as menos. Aqui as pretas, aqui as brancas... Os novos arranjos foram misturando as anotações mentais, e com o tempo mamãe já não se lembrava de tudo, só uma ou outra, Esta é francesa, Esta foi de um vestido de baile, Esta é valencienne... A coleção ainda existe, e minha mãe, aos 97 anos, lúcida como nos velhos tempos das rendeiras, ainda se diverte a arrumar as caixas.
Antes de me mudar para o Ceará, andei pensando em doar essas rendas para algum museu de rendas, talvez o da casa de José de Alencar que tem pequeno acervo. E assim que me mudei, sonhava em me vestir sempre com roupas de renda local, ou bordadas por mulheres cearenses. Estranhava que aqui as mulheres, ricas ou pobres, não usassem rendas no seu dia a dia. Aos poucos o meu sonho foi sendo engolido pela realidade. Ainda vejo aqui pela Prainha, ou em Aquiraz, alguma rendeira passando com sua almofada à cabeça, ou numa varanda a tecer com os bilros, e mesmo há um centro de rendeiras, onde sempre vou comprar algum presente, antes de viajar. Lembranças do Ceará, recordações de uma arte que as rendeiras mestras estão levando para o céu.
ANA MIRANDA
dom@opovo.com.br
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