Por Pe. Francisco José, de Fortaleza - CE.
Dois
acontecimentos marcam a liturgia da grande e santa Quinta-feira: a última Ceia
do Cristo com seus discípulos e a traição de Judas. Um e outro encontram seu
sentido no amor. A última Ceia é a revelação última do amor redentor de Deus
pelo homem, do amor enquanto a essência mesma da salvação. A traição de Judas,
por sua vez, mostra que o pecado, a morte, a destruição de si mesmo, provêm
também do amor, mas de um amor desfigurado, desviado daquilo que merece
verdadeiramente ser amado. Tal é o mistério deste dia único cuja liturgia,
impregnada ao mesmo tempo de luz e de trevas, de alegria e de dor, nos coloca
diante de uma escolha decisiva da qual depende o destino eterno de cada um de
nós.
"Jesus,
sabendo que era chegada a hora de passar deste mundo para seu Pai, tendo amado
os seus que estavam neste mundo, amou-os até o fim. . " (Jo 13, 1). Para
compreender de fato a última Ceia, é preciso ver nela o desembocar deste grande
movimento de amor divino que começou com a criação do mundo e que, agora, irá
atingir sua plenitude na morte e na ressurreição do Cristo.
"Deus
é Amor" (Jo 4,8). E o primeiro dom do Amor foi a vida. Esta era
essencialmente uma comunhão. Para viver, o homem devia se nutrir, comer e
beber, comungar o mundo. O mundo era, pois, amor divino tornado alimento,
tornado corpo do homem. Estando vivo, isto é, comungando o mundo, o homem devia
estar em comunhão com Deus, fazer de Deus a finalidade e a substância de sua
vida. Comungar o mundo recebido de Deus era, na verdade, comungar Deus. O homem
recebia seu alimento de Deus e, transformando-o em seu corpo e sua vida, ele
oferecia o mundo inteiro a Deus, ele o transformava em vida em Deus e com Deus.
O amor de Deus havia dado a vida ao homem, o amor do homem por Deus
transformava esta vida em comunhão com Deus. Era o Paraíso. A vida ali era de
fato eucarística. Pelo homem, por seu amor por Deus, toda a criação devia ser
santificada e transformada em sacramento universal da presença divina, e o
homem era o padre deste sacramento.
Mas,
pelo pecado, o homem perdeu esta vida eucarística. Ele a perdeu, porque deixou
de olhar o mundo como um meio de comunhão com Deus e sua vida como uma
eucaristia, uma adoração e um louvor... ele amou-se a si próprio e ao mundo em
si mesmo; ele se fez centro e fim de sua própria vida. Ele imaginou que a fome
a sede, quer dizer, o estado de dependência no qual se encontrava sua vida com
relação ao mundo, poderiam ser satisfeitas pelo próprio mundo, pelo alimento
como tal. Mas o mundo e o alimento, se forem despojados de seu sentido
primordial de sacramentos, ou seja, meios para comunhão com Deus, se não forem
acolhidos com fome e sede de Deus; em outras palavras, se Deus não está mais
ali, o mundo e o alimento não podem mais dar a vida, nem satisfazer fome
alguma, pois eles não têm a vida em si mesmos. Amando-os por eles mesmos, o
homem desviou seu amor do único objeto de todo amor, de toda fome, de todo
desejo... e ele morreu. Porque a morte é a inevitável "decomposição"
da vida amputada de sua única fonte e daquilo que lhe dá seu sentido.
O
homem encontra a morte ali onde ele esperava encontrar a vida. Sua vida
tornou-se uma comunhão com a morte, porque em lugar de transformar o mundo em
comunhão com Deus pela fé, pelo amor e pela adoração, ele submete-se
inteiramente ao mundo; ele deixou de ser o padre para tornar-se o escravo dele.
E por este pecado do homem, o mundo inteiro tornou-se um cemitério onde os
povos, condenados à morte, comungam a morte, "plantados nas trevas da
morte" (Mt 4, 16).
Jesus
O homem traiu, mas Deus permaneceu fiel ao homem. Como nós dizemos na Liturgia de São Basílio: "Tu não rejeitaste para sempre a criatura que afeiçoaste, Ó Deus de bondade, nem esqueceste a obra de Tuas mãos; mas Tu a visitaste de várias maneiras na ternura de Teu coração." Uma nova obra divina ia começar: a da redenção e da salvação. Ela se cumpriria no Cristo, o Filho de Deus, que para dar outra vez ao homem sua beleza original e devolver à sua vida o caráter de comunhão com Deus, se fez homem, tomou sobre Si nossa natureza, com sua sede e sua fome, com seu desejo e amor pela vida. Nele, a vida foi revelada, dada, aceita, cumprida como uma perfeita eucaristia, uma total e perfeita comunhão com Deus. O Cristo rejeitou a tentação fundamental do homem, "viver somente do pão," e revelou que é Deus e seu Reino que são o verdadeiro alimento, a verdadeira vida do homem. E desta perfeita vida eucarística, repleta de Deus, portanto divina e imortal, ele faz dom a todos aqueles cuja vida encontra nele todo seu sentido e seu conteúdo. Tal é a rica significação da última Ceia. O Cristo se oferece como alimento verdadeiro do homem, pois a vida manifestada nele é a verdadeira vida. Assim, o movimento de amor que começa no Paraíso com o divino "tomai e comei. . " (porque se nutrir é a vida do homem) atinge sua plenitude com o "Tomai e comei" do Cristo (porque Deus é a vida do homem). A última Ceia recria o Paraíso de delícias, restaura a vida enquanto eucaristia e comunhão.
Esta
hora de amor extremo é também a da mais extrema traição. Judas deixa a luz da
câmara alta para afundar-se dentro da noite. "Era de noite" (Jo 13,
30). Por que ele parte? "Ele ama," responde o Evangelho, e os hinos
da Quinta-feira santa sublinham diversas vezes este amor fatal. Importa pouco,
com efeito, que este amor consista no "dinheiro." O dinheiro aqui,
simboliza todo amor pervertido e desviado que leva o homem a trair a Deus. É um
amor roubado a Deus e Judas é, pois, o "ladrão." O homem, mesmo se
não é mais Deus ou em Deus que ele ama, não cessa de amar e de desejar, pois
ele foi criado para o amor, e o amor é a sua própria natureza; mas é então uma
paixão cega e auto-destrutiva e a morte é dela o fim. A cada ano, quando nos
afogamos nesta luz e nesta profundeza insondáveis da grande Quinta-feira, a
mesma questão crucial nos é colocada: respondo ao amor do Cristo e aceito que
ele se torne minha vida, ou serei eu o Judas na Sua noite?
Os
ofícios da grande Quinta-feira compreendem: as matinas, as vésperas seguidas da
Liturgia de São Basílio, o Grande. Nas igrejas catedrais, o lava-pés tem lugar
após à Liturgia; enquanto o Diácono lê o Evangelho, o bispo lava os pés de doze
padres, nos relembrando que é o amor do Cristo que é o fundamento da vida na
Igreja e que, no seio desta, está o modelo de toda relação. É também nesta
grande Quinta-feira que os santos óleos são consagrados pelos chefes das
Igrejas autocéfalas; esta cerimônia significa que o amor novo do Cristo é o dom
que recebemos do Espírito no dia de nossa entrada na Igreja.
Nas
matinas, o tropário dá o tema do dia: a oposição entre o amor do Cristo e o
desejo insaciável de Judas:
«Enquanto
que os gloriosos discípulos
estavam iluminados pela lavagem dos pés,
o ímpio Judas, enegrecido pelo amor ao dinheiro,
vendeu aos juizes indignos o justo Juiz.
"Ó Tu, amante do dinheiro,
olha aquele que se enforcou por causa dele!
Afasta-te pois deste desejo insaciável,
quem ousou realizar uma tal ação contra o Mestre.
"Mas Tu, Senhor, bom para todos, glória a Ti!»
estavam iluminados pela lavagem dos pés,
o ímpio Judas, enegrecido pelo amor ao dinheiro,
vendeu aos juizes indignos o justo Juiz.
"Ó Tu, amante do dinheiro,
olha aquele que se enforcou por causa dele!
Afasta-te pois deste desejo insaciável,
quem ousou realizar uma tal ação contra o Mestre.
"Mas Tu, Senhor, bom para todos, glória a Ti!»
Depois
da leitura do Evangelho (Lc 12, 1-40), o belo cânon de São Cosme nos introduz
na contemplação do mistério da última Ceia, de seu lado místico e eterno. O
hirmos da nona ode nos convida a tomar parte no banquete ao qual o Senhor nos
convida:
«Vinde,
vós os crentes!
Alegremo-nos da hospitalidade do Senhor
no banquete da imortalidade,
na câmara alta, elevando nossos corações...»
Alegremo-nos da hospitalidade do Senhor
no banquete da imortalidade,
na câmara alta, elevando nossos corações...»
Nas
vésperas, os stykeroi sublinham o outro pólo, trágico, desta grande Quinta-feira,
a traição de Judas:
«Judas,
como servidor, mostrou-se pérfido em suas obras;
como discípulo mostrou-se urdidor de conspiração;
como amigo, revelou-se demônio.
Ele acompanhava seu Mestre,
mas no seu íntimo, meditava a traição...»
como discípulo mostrou-se urdidor de conspiração;
como amigo, revelou-se demônio.
Ele acompanhava seu Mestre,
mas no seu íntimo, meditava a traição...»
Após a Entrada, faz-se três leituras do
Velho Testamento:
1. Êxodo
19:10-19 - A descida de Deus do monte Sinai em direção a seu povo, imagem da
vinda de Deus na Eucaristia.
2. Jó
38, 1-24 e 42:1-5 - Fala de Deus a Jó, e resposta deste: "Eu falei sem
compreensão de maravilhas que me ultrapassam e que eu ignoro..." — e estas
maravilhas divinas são cumpridas no dom do Corpo de Cristo e de seu Sangue.
3.
Is 50, 4-11 - Começo das profecias do Servo sofredor.
A
Epístola é tirada de São Paulo, 1Cor 11, 23-32; é o relato da última Ceia,
dando o sentido da comunhão.
A
leitura do Evangelho (a mais longa do ano) é formada de trechos de quatro
evangelistas e nos faz ouvir o relato completo da última Ceia, da traição de
Judas e da prisão de Cristo no jardim.
O
hino dos Querubins e a antífona da comunhão são substituídos pelas palavras da
oração antes da comunhão:
«Recebe-me
Senhor neste dia
Na tua mística Ceia
Eu não desvendarei os mistérios aos teus inimigos
Eu não te darei um beijo como Judas
Mas como o ladrão arrependido eu te confesso.
Lembra-te de mim Senhor no Teu Reino. Aleluia! Aleluia! Aleluia!»
Na tua mística Ceia
Eu não desvendarei os mistérios aos teus inimigos
Eu não te darei um beijo como Judas
Mas como o ladrão arrependido eu te confesso.
Lembra-te de mim Senhor no Teu Reino. Aleluia! Aleluia! Aleluia!»
Fonte: O
Mistério Pascal - Comentários Litúrgicos, Alexandre Schmémann, Olivier Clément
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