Por Felipe Gomes, Lucas Rebelo
Na literatura, na música, na história, na
pintura, no cinema e mais recentemente nos laboratórios de pesquisa, um afeto
cearense que já ganhou a eternidade
É fim de tarde no sertão cearense. O
crepúsculo, que mais uma vez foi antecedido por um dia de altas temperaturas e
da dura lida, traz consigo um curioso evento. Uma a uma, as cadeiras coloridas
vão ocupando as calçadas da vizinhança. Sorrisos amigos, olhares que abraçam e
uma prosa daquelas que te faz perder a hora compõem o cenário.
Mais à diante, crianças brincam. É como se o
tempo não tivesse passado. Escravos de Jó, amarelinha, bila… Àquela altura, a
inocência dos pequenos e o brilho no olhar, que apenas a simplicidade das
pequenas felicidades pode proporcionar, só se deixam interromper pelo cheiro
forte do café fresquinho que invade a rua. Cessa a brincadeira, é hora da
merenda. E vem em boa hora, afinal não dá para sujar a roupa de usar “à
noitinha” antes da hora do jornal.
E continua. Mais brincadeiras, mais conversas
e ao fundo uma trilha sonora das mais curiosas. Como não se encantar pelo sutil
ranger das cadeiras de balanço? No entrelaçar das tiras de plástico – macarrão,
para quem é entendedor dos seus processos de fabricação -, a passagem perfeita
para o amigo de todas as tardes que logo chega. Assim como quem mora ali, seu
movimento de balanço não se deixa enganar por outros ventos.
Calçadas totalmente ocupadas. E o barulho que
vem de longe, crescendo a cada instante justifica aquela espécie de cerimonial.
O convidado é um forasteiro que vem do mar, desbravando o Vale do Jaguaribe,
invadindo casas, levantando saias e abrandando almas.
O visitante é um recado de Deus, lembrando
que o sertão, mesmo em toda sua agonia, não foi esquecido. A mãe natureza,
sábia que só ela, sopra continente adentro e com a pontualidade de um gentleman
inglês. Ele chega bagunçando tudo, reduzindo as temperaturas e aquecendo os
corações.
O mesmo doce que embebeu-se nos lábios de mel
da virgem índia do romance de José de Alencar e que fez voar seus cabelos
negros, como graúna, torna a voltar. Assim como na história de amor de Iracema
e Martin, ele ainda derrama deliciosa frescura no ar e causa um inconfundível
arrepio.
São alguns instantes que ao longo do tempo
têm sido relatados pela literatura, pela música e eternizado pela pintura. Um
fenômeno que, de uns tempos para cá, vem sendo alvo de estudos constantes da
ciência – da física, mais especificamente. A conclusão das pesquisas comprova,
até aqui, o que o imaginário do povo sertanejo já sabia: uma brisa marítima
segue rumo ao continente nos fins das tardes da época mais quente do ano. No
meio do caminho encontra o comparsa perfeito e, canalizado pelo Rio Jaguaribe,
corta o Sertão do Ceará, levando conforto térmico para o povo do Sertão. Esse
vento é um daqueles que tem nome. E se chama Aracati.
De
Aracati ao Icó
É nos povoados mais afastados das áreas
urbanas e na boca de quem já ostenta cabelos brancos e riscos de sabedoria no
rosto que o Aracati faz fama. Generoso, o vento emprestou seu nome para a
cidade em que começa sua jornada. Por lá, ainda hoje há quem espere pelo
refresco vespertino que só ele traz, assim como no cenário retratado pelo
pintor cearense do século XIX José Reis Carvalho na tela “Moinho de Vento do
Aracati”.
Moinhos são, por sinal, a especialidade da
cidade homônima que aprendeu a extrair o potencial eólico da brisa e dos bons
ventos da região, ora com bravios como o revolucionário Dragão do Mar, ora
lembrando o abraço brando da atuação de Emiliano Queiroz, ambos filhos da
terra.
A viagem pelo Vale do Jaguaribe continua e,
com velocidades que chegam a atingir 5 metros por segundo (m/s), o Aracati
chega à Jaguaruana em tempo de ver as últimas redes serem tecidas pelas fábricas
da região, especializada na produção do artigo. Depois, conduzido pelo Riacho
Araibu, afluente do Rio Jaguaribe, o ventinho encontra o solo fértil e a gente
trabalhadora que fez nascer a “Laranja de Russas”, variedade típica da cidade
cearense que adjetiva a fruta.
Os rápidos momentos em que passa por cada
cidade da região parecem uma eternidade para quem se acostumou a aguardá-lo. O
sol já está perto de se pôr quando o barulho da rajada anuncia que o Aracati
chegou à Limoeiro do Norte. O vento faz girar os pneus das “magrelas”
estacionadas na cidade conhecida como “Terra das Bicicletas” e, quando se dá
fé, ele já passou, descendo para Tabuleiro do Norte. Dali para Jaguaribe é um
pulo. Cortada pelo rio comparsa nas andanças, a cidade é agraciada pela aragem
quando o céu já anuncia a noite.
No decorrer das horas, o Vento Aracati
passeia por outras cidades da região, como Itaiçaba, São João do Jaguaribe,
Alto Santo, Jaguaribara, Orós e Iguatu. São ao todo 300 quilômetros percorridos
até que, antes das nove da noite, vai bater em Icó. A cidade foi o último lugar
em que vestígios da brisa foram encontrados pelos estudiosos da Fundação
Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme) e da Universidade
Estadual do Ceará (UECE). Depois desse ponto pouco se sabe.
A Ciência procura mais informações sobre o
fenômeno e o objetivo é nobre: explorar seu potencial eólico. Na literatura,
além do romance alencarino, a escritora Raquel de Queiroz reservou umas
palavras de suas 100 crônicas escolhidas para falar do Aracati. A brisa também
já foi musicada pelos compositores Eugênio Leandro e Oswaldo Barroso e
catalogada nos estudos daquele que talvez seja o maior historiador do Ceará,
Raimundo Girão.
Dito isto, este texto termina como o próprio
Aracati: se dissipando aos poucos, deixando um pouco de ternura pelas cidades
que corta e sobretudo a definição mais afetiva, aquela que vem do imaginário de
quem só tem a fé para se apegar, com a certeza de que amanhã é um novo dia para
colocar a cadeira na calçada e esperar por mais um sopro de Deus enquanto a
chuva não vem.
* Esse texto foi construído tendo como base
as pesquisas dos professores Bosco Leal Júnior – diretor do Laboratório
Integrado de Micrometeorologia (LIMMA) da Universidade Estadual do Ceará (UECE)
– e Henrique Camelo, estudioso que escreveu uma dissertação de mestrado sobre o
tema. Nas pesquisas também contamos com a ajuda da Mirada Filmes, na pessoa de
Aline Portugal, que gentilmente nos cedeu o documentário “Aracati”, ainda a ser
lançado.
Fonte: http://www.somosvos.com.br/
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