Realidade de indígenas do estado do Ceará é apresentada
em canções que evocam tradições, a história, a natureza e a luta destes povos
Debruçar-se sobre a
própria realidade através da arte pode ressignificar, dentre outras atitudes,
refúgio, resgate e preservação. Nesse sentido, etnias indígenas do Ceará
revelam fragmentos de memórias, vivências e batalhas em cantos que atravessam
gerações. Por meio da música, particularidades da etnia tornam-se conhecidas,
lutas são fortalecidas e tradições, mantidas, ainda que as intrusões de
não-índios insistam em adentrar as aldeias.
Cercados pela natureza,
esta não poderia deixar de figurar nas composições coletivas. O cenário é uma
das maiores inspirações. Cada etnia indígena, ao seu modo, ostenta, nas
músicas, as belezas naturais do território que a abriga, que renova forças e
oferece sustento à comunidade. "Sempre buscamos entoar a questão da natureza.
Mas os Tremembé têm um detalhe que é diferente. Como habitam a região
litorânea, abordam o mar, os encantados que existem na água, o coco, os
elementos da área", conta a índia tremembé Cleidiane Castro.
Memória
"Me inspiro na
mata. Quando fiz a primeira música, eu estava na mata, apanhando castanha e
ainda morava na lombada da Lagoa da Encantada. As músicas falam da realidade,
porque a natureza é a morada do índio", diz a cacique Pequena, dos
Jenipapo-Kanindé.
Em Aquiraz, na Região
Metropolitana de Fortaleza (RMF), os Jenipapo-Kanindé são exemplo de etnia que
propaga o que vivencia através de cantos, especialmente, os compostos pela
cacique Pequena, líder da comunidade. O Morro do Urubu, a Lagoa da Encantada, a
mata preservada e o desejo de uma terra finalmente demarcada são alguns dos
componentes do dia a dia da comunidade há anos e que foram salientados pela voz
da índia de 69 anos, que compôs sem saber escrever.
"Comecei a cantar
há 14 anos e fui gravando na memória. Eu tenho todas as músicas gravadas no
'computador' da minha mente. Graças a Deus nunca perdi nada. Tenho 16
músicas e, quanto canto, me sinto tão feliz, tão leve, estou em um
paraíso", comenta a líder dos Jenipapo-Kanindé.
"Troncos velhos"
Na realidade da aldeia
Tapeba, concentrada a poucos quilômetros de Fortaleza, em Caucaia, outras
esferas da natureza os cercam e são musicadas, mas, segundo Weibe Tapeba, uma
das lideranças da etnia, a história da formação do povo Tapeba também motiva
composições. "A maioria das músicas é ligada à natureza, principalmente à
(planta) jurema, às matas e ao mar. A história do nosso povo é muito sofrida e
essa memória é muito viva na cabeça dos mais antigos, que a gente chama de
'troncos velhos', então muitas músicas são de muito tempo atrás, mas outras são
atuais, porque a cultura é dinâmica".
As canções indígenas são
tantas que algumas se esvaem com o passar dos anos. O registro é a memória, o
palco é a terra. Cada canção tem sua finalidade e ocasião específica para ser
manifestada, é o que explica Weibe: "Tem música que não sai do 'sucesso',
que é como se fosse algo divino e que no ritual deve ser cantada, como 'Quem
deu esse nó', música forte que traz resistência. Tem música que é mais
apropriada para a noite, música que é mais apropriada para o dia, música que a
gente canta em manifestações, que falam de luta, de retomada, músicas que nós
puxamos aqui e que viraram músicas dos povos".
Como hinos, os cânticos
indígenas mostram a resistência de um povo que, embora dividido em grupos com
ascendências distintas, aparentam semelhanças no passado e no presente
mostradas pela voz, pelo enfrentamento e pelo cuidado com a própria cultura.
Assim, musicam uma vida,
muitas vezes, desconhecida, ainda que encantadora.
Fonte: Caderno 3 – Diário do Nordeste (07/ 12/ 14)
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