No Brasil, onde a média de leitura é
de dois livros ao ano, número de eventos literários registra crescimento
Autor do clássico contemporâneo "Cidade de Deus", livro que
deu origem ao filme homônimo, o carioca Paulo Lins tinha acabado de chegar ao
Festival Literário de Votuporanga (Fliv), no interior de São Paulo, em agosto
passado, para dar uma palestra. Num dado momento, enquanto brincava com um
menino fantasiado de palhaço numa pracinha da cidade, o moleque perguntou:
"Sabe quem eu vou ver hoje?". Paulo respondeu que não sabia. O menino
embarcou: "O moço que escreveu aquele filme, 'Cidade de Deus'. A minha
professora vai levar. É meu filme preferido, mas minha mãe não me deixa
assistir a ele. Já vi 12 vezes escondido".
Paulo sorriu tímido, deu
tchau e seguiu para a palestra. "Quando o menino chegou lá e percebeu que
era eu o palestrante, o autor da história de que ele tanto gostava, saiu
correndo do meio da turma de alunos, subiu ao palco e me deu um beijo. Foi
muito emocionante", desmancha-se Paulo Lins, que em 2014 participou de
mais de 50 encontros literários em várias cidadezinhas do Brasil.
"Houve outro evento
desses, em Bragança Paulista, onde conheci quatro jovens, e cada um me entregou
um livro. Eram quatro moradores de favelas da cidade dizendo que aprenderam
comigo que favelado também podia ser escritor. Quando eu teria a chance de
conhecê-los, de saber que essas transformações de fato acontecem? Fico muito
feliz que encontros literários tenham se tornado uma moda no país. Antes só
havia eventos assim para o público rico, em escolas particulares, centros
culturais. Agora tem feira literária em tudo quanto é cidade, e, como elas são
gratuitas, todo mundo pode ir. Acredito que esses encontros são hoje o
principal incentivo à leitura no Brasil".
Estatísticas
É uma contradição
curiosa: num país onde a média de leitura é de apenas dois livros inteiros por
ano (segundo a última pesquisa "Retratos da leitura no Brasil", do
Instituto Pró-Livro, de 2012), o número de feiras, festas, salões de leitura,
bienais, jornadas e festivais aumenta ano a ano. A última aferição do MinC
listava 257 eventos em 2013 - mais da metade (137) na Região Sul. Em 2014,
foram pelo menos 320, de acordo com levantamento feito pelo Globo.
A partir do mês que vem,
quando começa a temporada de 2015, a previsão é que o número de eventos supere
o do ano passado, apostam curadores e especialistas.
O sucesso é tanto que
alguns encontros atraem como micareta: a feira Nacional do Livro de Ribeirão
Preto, por exemplo, cuja próxima edição será em junho, recebeu cerca de 450 mil
pessoas em 2014. O Bloco da Preta, capitaneado pela cantora Preta Gil, arrastou
pouco mais do que isso pelas ruas do Centro do Rio no último carnaval.
"Acho que nos
últimos cinco anos estive em cerca de 50 ou 60 eventos. Feiras com três
estandes apenas ou com uma centena deles", conta o escritor gaúcho Carlos
Schroder. "O que me deixa muito feliz é o surgimento de eventos no
interior dos estados e o crescimento das pequenas feiras. Mesmo as menores
entenderam a importância de ter debates e escritores em sua programação, e não
apenas o simples comércio de livros", comenta.
"A verdade é que o
livro foi praticamente expulso da vida pública brasileira. Você não vê as
pessoas lendo nas praças, nas ruas, elas carregam qualquer coisa nas mãos,
menos livros. A imagem do livro se desgastou a tal ponto que precisamos de
campanhas e mais campanhas de incentivo à leitura no país. Mas as feiras e os
festivais estão recolocando o livro em pauta", dispara o escritor.
Festas
Muita gente atribui o
sucesso desse tipo de evento ao exemplo bem-sucedido da Festa Literária
Internacional de Paraty (Flip), que caminha para sua 13ª edição. Programada
entre os dias 1º e 5 de julho, a Flip já levou à cidade autores do porte de
Eric Hobsbawm, Robert Crumb, Christopher Hitchens e Nadine Gordimer, mudando
completamente a percepção turística de Paraty.
Muitas cidades imitam
até o nome do evento: depois da Flip, já surgiram a Fliporto, em Porto de
Galinhas (desde 2014, ela se mudou para Olinda), Pernambuco; a
Fliparanapiacaba, em Santo André, São Paulo; e outras tantas, como a Fliro, em
Ariquemes, Rondônia; a Flimar, em Marechal Deodoro, Alagoas; a Flivima, em
Visconde de Mauá, Rio de Janeiro; a Flimt, em Cuiabá, Mato Grosso; a Flap, em
Calçoene, Amapá; a Flipipa, em Pipa, Rio Grande do Norte; e a Flaq, em Aquiraz, município cearense.
O jornalista e agitador
cultural baiano Emmanuel Mirdad conta que até o estilo colonial de Paraty
serviu de referência quando ele bolou uma festa literária para fomentar o
turismo do Recôncavo Baiano. Apesar de a cidadezinha de Santo Amaro parecer a
opção mais óbvia, por ser o berço de Caetano Veloso e Maria Bethânia,
principais referências culturais da região, ele decidiu implantar a experiência
na pequena Cachoeira - que não tem sequer uma livraria ou biblioteca.
"Arquitetonicamente,
a cidade é muito parecida com Paraty", comenta Mirdad, que contou até com
a consultoria de Mauro Munhoz, diretor-presidente da instituição Casa Azul,
organizadora da Flip, antes de inaugurar a Flica (Festa Literária Internacional
de Cachoeira), em 2011.
"Hoje, a Flica é o
segundo 'São João' da cidade. Não dou cinco anos para alcançarmos a Flip. Aqui
é uma Suíça, não há só palestrantes de esquerda, mas de direita também. Cabe
Paulo Coelho, cabe Olavo de Carvalho. Meu sonho é trazer um escritor como John
Green para encher a cidade. E a Flica paga bom cachê (diferentemente da Flip,
em que os palestrantes são convidados, mas não remunerados, na festa de
Cachoeira os escritores recebem R$ 3 mil) e sempre tem autores baianos em todas
as mesas, para valorizar a cultura local", detalha Mirdad.
Idealizador e curador do
Festival Literário de Araxá, o Fliaraxá, em Minas Gerais, o jornalista e
escritor Afonso Borges acredita que as feiras literárias só se tornaram tão
profícuas nos últimos anos por causa de uma alteração recente na Lei Rouanet.
"Eu tenho uma
máxima desde meus tempos de repórter investigativo que é: 'siga a grana'. Desde
que houve essa alteração na Lei Rouanet, no fim da gestão da Ana de Hollanda,
as feiras, festivais e afins, que eram enquadrados no artigo 26, passaram a ser
enquadrados no artigo 18, ou seja, tornaram-se 100% dedutivos. Por isso,
passaram a ser um investimento tão interessante para as empresas",
argumenta Afonso.
Vale lembrar que, desde
2006, o BNDES já destinou mais de R$ 1,2 bilhão para financiar 26 projetos do
mercado editorial -, e as festas literárias abocanharam boa parte dos recursos.
Diferencial
Nesse "mar de
feiras", compara Afonso Borges, o mais difícil é fazer um evento consistente,
que tenha conteúdo social e cultural, que provoque, de fato, o incentivo à
leitura.
"As grandes feiras
são absolutamente comerciais, forçam a entrada de estudantes para aumentar o
número de visitantes. O diferencial é uma boa curadoria. Um evento literário
desse porte muda a história de uma cidade. Mudou a história de Cartagena, na
Colômbia, mudou a história de Paraty", reforça Afonso.
Infelizmente, os
festivais literários não contam só histórias de sucesso. "Há no Brasil
muitos eventos picaretas, que são apenas para inglês ver. Captam uma bolada e
fazem qualquer coisinha, sem se preocupar com uma curadoria adequada. Só que
esses eventos costumam ter vida curta, pois não há mais espaço para amadorismo,
e o mercado ainda é pequeno, logo os picaretas ficam marcados", defende
Carlos Schroder, lembrando que "tem de tudo" nesse tipo de evento.
"Eu já vi autor
quase sair no braço com leitor, mediador jogar água em autor, gente que deixou
de comprar comida para comprar livros. Eu mesmo presenciei uma quase tragédia
em junho, quando a cidade de Jaraguá do Sul sofreu uma enchente terrível, bem
nos dias em que realizávamos a Feira do Livro do município: a água do rio
chegou a exatos dois metros de 70 mil livros que estavam nos estandes, e
ficamos todos ilhados".
Mariana Filgueiras
Agência o Globo
Agência o Globo
Fonte: Caderno 3 – Diário do Nordeste (02/ 02/ 15)
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