domingo, 28 de dezembro de 2014

Aquiraz: Ser mulher rendeira e o ofício da resistência

Os bilros vão passando um em cima do outro, seguindo alguma lógica difícil de acompanhar, e a conversa flui. As linhas compõem o entrelaçado enquanto os olhos de Maria de Lourdes de Souza, 68, por segundos sequer vão na almofada onde a renda vai se mostrando. O talento é tão evidente quanto a beleza da peça. Mas a beleza não passa sozinha. Fazer renda é, sobretudo, resistir.

Traz junto olhos cansados, corpos doídos, muito tempo dedicado a um único produto. Por vezes, meses inteiros - ao que o dinheiro não é tão proporcional. A renda carrega a força das artistas experientes, mas quase nenhum exemplar de nova geração. São histórias que permanecem na Prainha, em Aquiraz, reduto dessa cultura cearense e da persistência.

Tal qual as autoras dos bordados do especial Natais por Francisco, publicado no último dia 24 no O POVO, as rendeiras da Prainha costuram suas narrativas entre habilidades, fé e coragem. No mar, o caminho era dos homens, pescadores. No chão, as mãos femininas ensinavam a prática de avó para mãe, entre filhas e primas, tias e irmãs.

Todas, quase sempre desde os sete anos, mantêm intimidade com os bilros, feitos da haste da madeira e da semente de buriti (“que tá acabando, a gente tem que encomendar”), com as almofadas forradas de folha de bananeira (“que tão acabando”) e com os espinhos de mandacuru - adivinhem, também em falta. Maria de Lourdes narra que antigamente vender a renda era difícil. “O trabalho hoje é mais reconhecido. Já ensinei duas bolivianas, uma japonesa, gente de São Paulo, que veio só pra aprender”.

“É muito dura a vida, mas eu gosto. A gente cria força de vontade”, conta Olenir Vieira, 63. “Minha mãe projetou nos filhos o que não pôde ser. Ela vivia no meio de pessoas cultas, então sempre estimulou os estudos ao mesmo tempo em que ensinou a renda às filhas”. Hoje, o funcionalismo público é memória, enquanto ser rendeira perdura no cotidiano.

A hereditariedade também se fez presente na vida de Eveline da Costa, 47, a mais velha dos nove filhos, mas quem alumiou foi a avó, pois a mãe não teve condição de criar todos. Os estudos foram interrompidos na oitava série, porque não dava para conciliar com o trabalho. Outros ofícios foram tentados ao longo dos anos. “Mas a minha profissão era a renda e vou continuar fazendo até Deus mandar me buscar”.

Entre os trabalhos de linha fina - mais delicado, demorado e específico - e os de linha grossa, entre a linha branca e a colorida, o desafio, conta Olenir, é promover a atualização. “Nós começamos a transformar. Tem que perceber as tendências, diversificar produtos, fazer cursos. Muitas não gostam, mas têm que se renovar”.

Na Associação das Rendeiras da Prainha, Eveline é das mais novas, e a idade já quase bate na casa dos 50 anos. “As filhas aprendem, mas elas têm outros sonhos, e devem ter os próprios sonhos. Sinceramente, é preocupante porque você não vê uma jovem sentada na almofada pra trabalhar. Aprender é uma coisa, continuar é outra”, descreve.

No mesmo chão de areia em que Eveline narra a inquietude, Yasmin, 8, de férias, insiste no pedido para a avó Maria de Lourdes. “Todo dia ela diz: ‘vó, faz essa almofada e bota logo esses bilros que eu quero fazer renda’. Quando ela aprender, não sei se vai fazer, mas eu vou ensinar”. É quando as rendeiras bordam resistência.

SAIBA MAIS

As narrativas de Maria de Lourdes, Olenir e Eveline se misturam à história do Centro das Rendeiras Luíza Távora. É onde chegam às oito da manhã e ficam até cinco da tarde; onde produzem, vendem, almoçam, fofocam. Mas a estrutura há anos é precária. Hoje se resume a alguns barracos que elas mesmo ergueram.

De acordo com o titular da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS), Josbertini Clementino, a fase atual do projeto é de conclusão da licitação. As obras, estima, seriam concluídas até o primeiro semestre de 2015. “Arquitetonicamente é diferente do Centro de Rendeiras Mirian Mota, no Iguape, mas mantém a característica de ser um centro de comercialização e produção”. 

Reveja o especial Natais por Francisco http://especiais.opovo.com.br/nataisporfrancisco/



Fonte: Domingo – Jornal Opovo (28/ 12/ 14)

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