segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Beberibe: Vida & Arte inicia série sobre a lei que reduz pena por meio da leitura

Lei que reduz pena por meio da leitura já muda rotina dos presídios cearenses. Incluindo autores de crimes hediondos, a medida objetiva humanizar o sistema carcerário

“Aprendemos palavras para melhorar os olhos”


Palavras de Rubem Alves grafadas nas paredes do IPF



Daniele estava “na hora certa, no lugar errado” naquela quarta-feira em que foi presa. Era 6 de fevereiro de 2013, quando ela e a mãe foram “detidas por 33”, tráfico de drogas. No Instituto Penal Feminino (IPF), em Itaitinga, se viu cercada de grades cor-de-rosa que não aliviam o cárcere. Na nova rotina, porém, Daniele encontrou uma oportunidade de se redescobrir. “Eu não gostava de ler, mas aqui dentro procurei uma ocupação, uma tarefa”, admite. Cheia de orgulho, a mulher falante e vaidosa se apresenta hoje como a responsável pela biblioteca da unidade prisional.


Toda semana, “a menina que empresta livros” percorre todas as alas, com uma biblioteca móvel, oferecendo títulos para as demais detentas. Nos últimos dias, porém, Daniele tem notado um alvoroço maior toda vez que passa. É a curiosidade em torno da lei da remissão de pena por leitura, que permite o abatimento de quatro dias na prisão por cada obra lida. Já publicada no Diário Oficial de Estado, a redução vale para todos os detentos, inclusive, aqueles que cometeram crimes hediondos. Com o limite de um livro por mês, cada cativo pode diminuir até 48 dias por ano.


“A pena é entendida por muitos como uma vingança, mas essa é uma lógica que deve ser superada. A remissão é um esforço pela humanização do sistema prisional”, afirma Hélio Leitão, titular da Secretaria de Justiça (Sejus), em visita ao local de trabalho de Daniele, que sorri em acenos de cabeça. A bibliotecária por acidente assume ainda não ter respostas claras para oferecer às suas colegas, pois a lei ainda está sendo implantada pela Sejus, em parceria com a Secretaria de Educação (Seduc). Até o fim de fevereiro, porém, deve estar em pleno vigor.


A Seduc está montando comissão para acompanhar as leituras e definir quais títulos valerão para o abatimento de dias, entre obras filosóficas, sociológicas e literárias. Daniele não sabe se seu livro preferido, A vida na porta da geladeira, de Alice Kuipers, estará entre os selecionados. O enredo conta a relação entre mãe e filha que quase nunca se veem e que se comunicam deixando recados na porta do refrigerador. Para a mulher que vive encarcerada com a mãe, independentemente de remissão, as 240 páginas da ficção seguirão amenizando as noites na realidade.


“Leitura não é tudo”


Um novo 6 de fevereiro chegou e, enquanto Daniele contava um ano presa, a jovem Mariana foi detida por assalto a mão armada. Com “ensino médio completo”, a mais recente capturada já gostava de ler antes do cárcere. “Eu já tinha o hábito da leitura, queria fazer faculdade. Eu tive estudo, família e mesmo assim cheguei aqui”, relata, com voz mansa. Do alto dos 21 anos, ela já aprendeu que “leitura não é tudo”. Entretanto, não deixa de comemorar a lei da remissão. “Outras detentas que não têm costume de ler vão começar a mudar de vida”, projeta.


Longe dali, em seu gabinete, o deputado estadual Heitor Férrer (PDT) critica a lei. “Mesmo que a leitura engrandeça e (o detento) ganhe o prêmio Nobel de Literatura, ele tem de continuar preso. Estão confundindo ressocialização com redução de pena”, acusa o parlamentar. Para Heitor, a remissão pela leitura é um “mecanismo gerador de impunidade” no País. “O preso tem que ler mesmo, estudar, ter um ofício, mas é inaceitável que a leitura por si só reduza a pena”.


Hélio Leitão, titular da Sejus, rebate: “A remissão não pode ser confundida com frouxidão”. O gestor afirma que a redução faz parte de busca por “novas alternativas e modelos” no sistema prisional. “As pessoas que cometeram crimes merecem punição, não perder a dignidade, a condição humana”.


Liberdades


Egresso do sistema prisional cearense, o pesquisador nigeriano Cornelius Okwudili Ezeokeke escreveu Penas mais rígidas: justiça ou vingança?, um dos títulos destaques na biblioteca frequentada por Mariana. Para ele, que cursou o ensino médio no presídio, a leitura figurou como remissão de vida. “Em meu período de detento, a única coisa que me ajudou a superar a realidade degradante foi os livros a que tinha acesso e que me fizeram amar estudar”, defende. “Não tem como ter a educação sem leitura. A população carcerária precisa dessa oportunidade”.


Enquanto aguardam o início efetivo da redução, Daniele e Mariana seguem lendo. A jovem de 21 anos ajuda a amiga contando enredos de livros que lê para que a “emprestadora” espalhe as histórias. Já Daniele se arrisca também na escrita. Ela se alegra sempre que a sua sogra responde as cartas querendo tirar dúvida sobre algum vocábulo. “Eu estou falando bonito agora”, conta, já esperando ansiosa para conhecer a caligrafia da filha de 5 anos.

WEB DOC



Leituras do Cárcere em imagens


O webdoc da série Leituras do Cárcere está disponível no portal O POVO Online. O vídeo reúne depoimentos de detentos. A fotografia é de Rodrigo Carvalho; roteiro e entrevistas de Paulo Renato Abreu; edição de Renato Ferreira e coordenação de Émerson Maranhão. 

SAIBA MAIS


A sanção do projeto foi publicada no dia 7 de janeiro no Diário Oficial do Estado.


As bibliotecas móveis com acervo de 100 livros estão sendo distribuídas nas unidades prisionais do Ceará. Já foram entregues em 17 cadeias públicas, em municípios como Caucaia, Maracanaú e Beberibe.


Atualmente somente duas unidades possuem uma sala como biblioteca: o Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa (com 8 mil títulos) e o Presídio Professor Olavo Oliveira II (com 3.500 obras).
 

Esta matéria faz parte de uma série que o Vida&Arte publica esta semana sobre a lei que reduz pena por meio da leitura. Leia amanhã histórias sobre o dia a dia na biblioteca do IPPO II.






Fonte: Vida & Arte – Jornal O povo (02/ 02/ 15)

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