Uma galeria de arte em meio ao lixo torna-se
espaço de expressão da indignação com o nosso consumismo
Fazer daquilo que foi descartado algo que produza outros significados é algo que vem movendo a produção artística desde que a natureza passou a não dar mais conta de absorver os resíduos gerados pela nossa civilização.
Fazer daquilo que foi descartado algo que produza outros significados é algo que vem movendo a produção artística desde que a natureza passou a não dar mais conta de absorver os resíduos gerados pela nossa civilização.
Paulinho Cariri escolheu o lixão como espaço
para sua expressão artística Foto: Fabiane de Paula
Nesta nossa incursão pelos lixões do Estado do Ceará, antes mesmo de parar o carro, no lixão de Aracati, município praiano localizado a 154 quilômetros de Fortaleza, uma figura curiosa, vestida com paletó, camiseta de divulgação dele mesmo e com dreads nos cabelos, nos chamou a atenção. Pelo visto, também chamamos a atenção dele, que, mesmo sem largar os vasilhames que conduzia para pegar água, foi até nós, ávido por divulgar o trabalho que vem desenvolvendo naquele lugar.
Poeta, compositor, artista plástico, decorador exótico, fotógrafo, artesão, arte educador, voluntário, tecelão, ombro amigo, lixeiro e liso. Assim Paulo Pereira da Silva (foi duro arrancar esse nome dele) ou simplesmente Paulinho Cariri, 47, se define. Nascido e criado em Aracati, se intitula, também, como guevariano e ex-militante pró-Lula.
Sua ideia atual, de montar o maior museu do lixo da América Latina, surgiu a partir de uma experiência vivida entre os anos de 2004 e 2006. Seu objetivo era passar 100 dias sem banho, no lixão de Mossoró, município litorâneo do Rio Grande do Norte localizado a 92,4 quilômetros de Aracati e a 278 quilômetros de Natal. "Eu gosto de desafios", afirma o poeta do lixo. Só que essa empreitada em terras potiguares não foi a bom termo. Ele só aguentou 85 dias. "Meu corpo começou a papocar e quando tomei banho tive um choque térmico que durou três dias. Fiz isso porque fui rejeitado pela sociedade intelectual de Mossoró", conta.
Paulinho Cariri nos conta que foi para o Lixão de Aracati em 2007, depois de passar quatro meses dando oficina na Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci), da Prefeitura de Fortaleza. "Antes eu era um sonhador no meio do mundo. Hoje eu sou também um catador de material reciclável com o objetivo de realizar um sonho", declara sem parar de andar e mostrar objetos que coleciona e também suas produções artísticas.
No local, Paulinho Cariri criou uma espécie de "casa de lixo" com coisas que vai garimpando. Tem sala, quarto, cozinha e até galeria onde expõe suas obras que diz não vender porque a arte foi um dom que Deus lhe deu para presentear e expor.
"Hoje eu sobrevivo integralmente do lixo. Tenho um organismo de porco. Já comi alimento vencido há três anos", diz, mostrando, em sua "dispensa" um pacote de macarrão, feijão, um pote de maionese e outras coisas difíceis de decifrar num olhar.
"Já tô com saudade porque isso aqui vai acabar... Vai virar aterro... Todo mundo para um dia... Eu quero ter um lixão no meu quintal! Quero ser enterrado no lixo", declara ao ser perguntado sobre a implantação da nova Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).
Depois de 17 anos de dread, 20 de estrada e mais alguns de lixão, Paulinho Cariri usa, além de quadros, esculturas e instalações, a poesia para se autodefinir e falar.
Francisco Daniel dos Santos, 30 (11 no lixão de Aracati), afirma que Paulinho Cariri ajuda a animar o duro dia a dia. Ele conta que 40 catadores trabalham no local e que todos estão cansados de promessas de políticos. O material coletado é repassado a um atravessador de Cascavel, outro município praiano, que fica a 86,9 quilômetros de Aracati e a 68,6 quilômetros de Fortaleza.
Precursor
Em Fortaleza, entre a década de 1970 e 1990, nós tivemos Zé Pinto a mover nossos sentidos ao transformar sucatas em esculturas que remetiam à nossa cultura popular e à natureza. Menino, Francisco Magalhães Barbosa já produzia os próprios brinquedos. Homem maduro, passou a transformar em arte alumínio amassado, pregos envergados, molas disformes, numa época que ainda nem se falava em reciclagem.
Para expor o trabalho, Zé Pinto também reinventou a galeria, ao socializar a arte em espaços ao ar livre. Em 1975, expôs, no canteiro central da Avenida Bezerra de Menezes, em Fortaleza, uma escultura de Luiz Gonzaga, confeccionada a partir de para-choques, parafusos e outras sucatas de carro. Espirituoso, Zé Pinto batizou de Pintódromo o canteiro que funcionou como a vitrine de suas obras por muitos anos.
Logo as criações de Zé Pinto foram expostas em museus, praças, prédios e ruas de Fortaleza. Mas rapidamente transpuseram divisas e fronteiras do Ceará, do Nordeste e do Brasil. Sua produção artística pode ser encontrada em museus de Portugal e do Vaticano, e também em acervos particulares em Frankfurt e Colônia, na Alemanha, bem como em Nova York e New Hampshire, nos Estados Unidos. Ele parou de produzir em 1996, quando ficou viúvo e nos deixou em 2004.
Experimentação
Mais recentemente, o brasileiro tem na figura de Vik Muniz uma referência de artista plástico que, ao experimentar materiais e novas mídias, fez uma interessante incursão pelo mundo dos resíduos sólidos. Radicado em Nova York, em 2010 ele teve o documentário "Lixo Extraordinário", sobre o seu trabalho como catadores de materiais recicláveis no aterro de Jardim Gramacho, em Duque de Caxias (RJ), premiado no Festival de Sundance. No Festival de Berlim em 2010, foi agraciado em duas categorias.
Às moscas
Subindo o Rio Jaguaribe, não muito distante de Aracati fica o município de Limoeiro do Norte, a 209 quilômetros da Capital, Fortaleza. Chegamos ao lixão da cidade, às 16 horas, horário de luz perfeita para belas fotos, mas fomos recebidos apenas por moscas, muitas moscas mesmo.
Tantas que nem dava para abrir a boca ou os olhos. Só na manhã seguinte ficamos sabendo que os catadores só permanecem no local até 13h30 por causa da praga, e ainda assim, cobrem os ouvidos para evitá-las.
Quem nos deu essas informações foi Maria Rubens Saldanha Bezerra, 45, presidente da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis Bom Jesus Sul, com atuação no Lixão de Limoeiro do Norte, que encontramos em plena atividade.
Ela conta que já estava tudo certo para os catadores ocuparem um armazém, já disponibilizado pela Prefeitura, até com documentação, mas uma empresa privada ocupou o local. Ainda segundo suas informações de Maria Saldanha, a Procuradora Regional do Trabalho (PRT) já está questionando isso judicialmente. "Não entendo por que a Prefeitura não cedeu pros catadores e cedeu pra uma empresa, que tem muito mais condições", queixa-se.
Maria, que entrega o cargo de presidente da Associação em novembro, atua há 25 anos no Lixão de Limoeiro do Norte, onde hoje trabalham 37 catadores. No momento, eles se organizam para fundar uma cooperativa. "Só falta um local porque debaixo do sol não dá mais. Já estamos muito cozinhados", diz.
MARISTELA CRISPIM
EDITORA
Nesta nossa incursão pelos lixões do Estado do Ceará, antes mesmo de parar o carro, no lixão de Aracati, município praiano localizado a 154 quilômetros de Fortaleza, uma figura curiosa, vestida com paletó, camiseta de divulgação dele mesmo e com dreads nos cabelos, nos chamou a atenção. Pelo visto, também chamamos a atenção dele, que, mesmo sem largar os vasilhames que conduzia para pegar água, foi até nós, ávido por divulgar o trabalho que vem desenvolvendo naquele lugar.
Poeta, compositor, artista plástico, decorador exótico, fotógrafo, artesão, arte educador, voluntário, tecelão, ombro amigo, lixeiro e liso. Assim Paulo Pereira da Silva (foi duro arrancar esse nome dele) ou simplesmente Paulinho Cariri, 47, se define. Nascido e criado em Aracati, se intitula, também, como guevariano e ex-militante pró-Lula.
Sua ideia atual, de montar o maior museu do lixo da América Latina, surgiu a partir de uma experiência vivida entre os anos de 2004 e 2006. Seu objetivo era passar 100 dias sem banho, no lixão de Mossoró, município litorâneo do Rio Grande do Norte localizado a 92,4 quilômetros de Aracati e a 278 quilômetros de Natal. "Eu gosto de desafios", afirma o poeta do lixo. Só que essa empreitada em terras potiguares não foi a bom termo. Ele só aguentou 85 dias. "Meu corpo começou a papocar e quando tomei banho tive um choque térmico que durou três dias. Fiz isso porque fui rejeitado pela sociedade intelectual de Mossoró", conta.
Paulinho Cariri nos conta que foi para o Lixão de Aracati em 2007, depois de passar quatro meses dando oficina na Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci), da Prefeitura de Fortaleza. "Antes eu era um sonhador no meio do mundo. Hoje eu sou também um catador de material reciclável com o objetivo de realizar um sonho", declara sem parar de andar e mostrar objetos que coleciona e também suas produções artísticas.
No local, Paulinho Cariri criou uma espécie de "casa de lixo" com coisas que vai garimpando. Tem sala, quarto, cozinha e até galeria onde expõe suas obras que diz não vender porque a arte foi um dom que Deus lhe deu para presentear e expor.
"Hoje eu sobrevivo integralmente do lixo. Tenho um organismo de porco. Já comi alimento vencido há três anos", diz, mostrando, em sua "dispensa" um pacote de macarrão, feijão, um pote de maionese e outras coisas difíceis de decifrar num olhar.
"Já tô com saudade porque isso aqui vai acabar... Vai virar aterro... Todo mundo para um dia... Eu quero ter um lixão no meu quintal! Quero ser enterrado no lixo", declara ao ser perguntado sobre a implantação da nova Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).
Depois de 17 anos de dread, 20 de estrada e mais alguns de lixão, Paulinho Cariri usa, além de quadros, esculturas e instalações, a poesia para se autodefinir e falar.
Francisco Daniel dos Santos, 30 (11 no lixão de Aracati), afirma que Paulinho Cariri ajuda a animar o duro dia a dia. Ele conta que 40 catadores trabalham no local e que todos estão cansados de promessas de políticos. O material coletado é repassado a um atravessador de Cascavel, outro município praiano, que fica a 86,9 quilômetros de Aracati e a 68,6 quilômetros de Fortaleza.
Precursor
Em Fortaleza, entre a década de 1970 e 1990, nós tivemos Zé Pinto a mover nossos sentidos ao transformar sucatas em esculturas que remetiam à nossa cultura popular e à natureza. Menino, Francisco Magalhães Barbosa já produzia os próprios brinquedos. Homem maduro, passou a transformar em arte alumínio amassado, pregos envergados, molas disformes, numa época que ainda nem se falava em reciclagem.
Para expor o trabalho, Zé Pinto também reinventou a galeria, ao socializar a arte em espaços ao ar livre. Em 1975, expôs, no canteiro central da Avenida Bezerra de Menezes, em Fortaleza, uma escultura de Luiz Gonzaga, confeccionada a partir de para-choques, parafusos e outras sucatas de carro. Espirituoso, Zé Pinto batizou de Pintódromo o canteiro que funcionou como a vitrine de suas obras por muitos anos.
Logo as criações de Zé Pinto foram expostas em museus, praças, prédios e ruas de Fortaleza. Mas rapidamente transpuseram divisas e fronteiras do Ceará, do Nordeste e do Brasil. Sua produção artística pode ser encontrada em museus de Portugal e do Vaticano, e também em acervos particulares em Frankfurt e Colônia, na Alemanha, bem como em Nova York e New Hampshire, nos Estados Unidos. Ele parou de produzir em 1996, quando ficou viúvo e nos deixou em 2004.
Experimentação
Mais recentemente, o brasileiro tem na figura de Vik Muniz uma referência de artista plástico que, ao experimentar materiais e novas mídias, fez uma interessante incursão pelo mundo dos resíduos sólidos. Radicado em Nova York, em 2010 ele teve o documentário "Lixo Extraordinário", sobre o seu trabalho como catadores de materiais recicláveis no aterro de Jardim Gramacho, em Duque de Caxias (RJ), premiado no Festival de Sundance. No Festival de Berlim em 2010, foi agraciado em duas categorias.
Às moscas
Subindo o Rio Jaguaribe, não muito distante de Aracati fica o município de Limoeiro do Norte, a 209 quilômetros da Capital, Fortaleza. Chegamos ao lixão da cidade, às 16 horas, horário de luz perfeita para belas fotos, mas fomos recebidos apenas por moscas, muitas moscas mesmo.
Tantas que nem dava para abrir a boca ou os olhos. Só na manhã seguinte ficamos sabendo que os catadores só permanecem no local até 13h30 por causa da praga, e ainda assim, cobrem os ouvidos para evitá-las.
Quem nos deu essas informações foi Maria Rubens Saldanha Bezerra, 45, presidente da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis Bom Jesus Sul, com atuação no Lixão de Limoeiro do Norte, que encontramos em plena atividade.
Ela conta que já estava tudo certo para os catadores ocuparem um armazém, já disponibilizado pela Prefeitura, até com documentação, mas uma empresa privada ocupou o local. Ainda segundo suas informações de Maria Saldanha, a Procuradora Regional do Trabalho (PRT) já está questionando isso judicialmente. "Não entendo por que a Prefeitura não cedeu pros catadores e cedeu pra uma empresa, que tem muito mais condições", queixa-se.
Maria, que entrega o cargo de presidente da Associação em novembro, atua há 25 anos no Lixão de Limoeiro do Norte, onde hoje trabalham 37 catadores. No momento, eles se organizam para fundar uma cooperativa. "Só falta um local porque debaixo do sol não dá mais. Já estamos muito cozinhados", diz.
MARISTELA CRISPIM
EDITORA
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