quinta-feira, 16 de março de 2017

Vento Aracati: um doce sopro de Deus no Sertão




Na literatura, na música, na história, na pintura, no cinema e mais recentemente nos laboratórios de pesquisa, um afeto cearense que já ganhou a eternidade

É fim de tarde no sertão cearense. O crepúsculo, que mais uma vez foi antecedido por um dia de altas temperaturas e da dura lida, traz consigo um curioso evento. Uma a uma, as cadeiras coloridas vão ocupando as calçadas da vizinhança. Sorrisos amigos, olhares que abraçam e uma prosa daquelas que te faz perder a hora compõem o cenário.

Mais à diante, crianças brincam. É como se o tempo não tivesse passado. Escravos de Jó, amarelinha, bila… Àquela altura, a inocência dos pequenos e o brilho no olhar, que apenas a simplicidade das pequenas felicidades pode proporcionar, só se deixam interromper pelo cheiro forte do café fresquinho que invade a rua. Cessa a brincadeira, é hora da merenda. E vem em boa hora, afinal não dá para sujar a roupa de usar “à noitinha” antes da hora do jornal.

E continua. Mais brincadeiras, mais conversas e ao fundo uma trilha sonora das mais curiosas. Como não se encantar pelo sutil ranger das cadeiras de balanço? No entrelaçar das tiras de plástico – macarrão, para quem é entendedor dos seus processos de fabricação -, a passagem perfeita para o amigo de todas as tardes que logo chega. Assim como quem mora ali, seu movimento de balanço não se deixa enganar por outros ventos.

Calçadas totalmente ocupadas. E o barulho que vem de longe, crescendo a cada instante justifica aquela espécie de cerimonial. O convidado é um forasteiro que vem do mar, desbravando o Vale do Jaguaribe, invadindo casas, levantando saias e abrandando almas.

O visitante é um recado de Deus, lembrando que o sertão, mesmo em toda sua agonia, não foi esquecido. A mãe natureza, sábia que só ela, sopra continente adentro e com a pontualidade de um gentleman inglês. Ele chega bagunçando tudo, reduzindo as temperaturas e aquecendo os corações.

O mesmo doce que embebeu-se nos lábios de mel da virgem índia do romance de José de Alencar e que fez voar seus cabelos negros, como graúna, torna a voltar. Assim como na história de amor de Iracema e Martin, ele ainda derrama deliciosa frescura no ar e causa um inconfundível arrepio.

São alguns instantes que ao longo do tempo têm sido relatados pela literatura, pela música e eternizado pela pintura. Um fenômeno que, de uns tempos para cá, vem sendo alvo de estudos constantes da ciência – da física, mais especificamente. A conclusão das pesquisas comprova, até aqui, o que o imaginário do povo sertanejo já sabia: uma brisa marítima segue rumo ao continente nos fins das tardes da época mais quente do ano. No meio do caminho encontra o comparsa perfeito e, canalizado pelo Rio Jaguaribe, corta o Sertão do Ceará, levando conforto térmico para o povo do Sertão. Esse vento é um daqueles que tem nome. E se chama Aracati.

De Aracati ao Icó

É nos povoados mais afastados das áreas urbanas e na boca de quem já ostenta cabelos brancos e riscos de sabedoria no rosto que o Aracati faz fama. Generoso, o vento emprestou seu nome para a cidade em que começa sua jornada. Por lá, ainda hoje há quem espere pelo refresco vespertino que só ele traz, assim como no cenário retratado pelo pintor cearense do século XIX José Reis Carvalho na tela “Moinho de Vento do Aracati”.

Moinhos são, por sinal, a especialidade da cidade homônima que aprendeu a extrair o potencial eólico da brisa e dos bons ventos da região, ora com bravios como o revolucionário Dragão do Mar, ora lembrando o abraço brando da atuação de Emiliano Queiroz, ambos filhos da terra.

A viagem pelo Vale do Jaguaribe continua e, com velocidades que chegam a atingir 5 metros por segundo (m/s), o Aracati chega à Jaguaruana em tempo de ver as últimas redes serem tecidas pelas fábricas da região, especializada na produção do artigo. Depois, conduzido pelo Riacho Araibu, afluente do Rio Jaguaribe, o ventinho encontra o solo fértil e a gente trabalhadora que fez nascer a “Laranja de Russas”, variedade típica da cidade cearense que adjetiva a fruta.

Os rápidos momentos em que passa por cada cidade da região parecem uma eternidade para quem se acostumou a aguardá-lo. O sol já está perto de se pôr quando o barulho da rajada anuncia que o Aracati chegou à Limoeiro do Norte. O vento faz girar os pneus das “magrelas” estacionadas na cidade conhecida como “Terra das Bicicletas” e, quando se dá fé, ele já passou, descendo para Tabuleiro do Norte. Dali para Jaguaribe é um pulo. Cortada pelo rio comparsa nas andanças, a cidade é agraciada pela aragem quando o céu já anuncia a noite.

No decorrer das horas, o Vento Aracati passeia por outras cidades da região, como Itaiçaba, São João do Jaguaribe, Alto Santo, Jaguaribara, Orós e Iguatu. São ao todo 300 quilômetros percorridos até que, antes das nove da noite, vai bater em Icó. A cidade foi o último lugar em que vestígios da brisa foram encontrados pelos estudiosos da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme) e da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Depois desse ponto pouco se sabe.
A Ciência procura mais informações sobre o fenômeno e o objetivo é nobre: explorar seu potencial eólico. Na literatura, além do romance alencarino, a escritora Raquel de Queiroz reservou umas palavras de suas 100 crônicas escolhidas para falar do Aracati. A brisa também já foi musicada pelos compositores Eugênio Leandro e Oswaldo Barroso e catalogada nos estudos daquele que talvez seja o maior historiador do Ceará, Raimundo Girão.

Dito isto, este texto termina como o próprio Aracati: se dissipando aos poucos, deixando um pouco de ternura pelas cidades que corta e sobretudo a definição mais afetiva, aquela que vem do imaginário de quem só tem a fé para se apegar, com a certeza de que amanhã é um novo dia para colocar a cadeira na calçada e esperar por mais um sopro de Deus enquanto a chuva não vem.

* Esse texto foi construído tendo como base as pesquisas dos professores Bosco Leal Júnior – diretor do Laboratório Integrado de Micrometeorologia (LIMMA) da Universidade Estadual do Ceará (UECE) – e Henrique Camelo, estudioso que escreveu uma dissertação de mestrado sobre o tema. Nas pesquisas também contamos com a ajuda da Mirada Filmes, na pessoa de Aline Portugal, que gentilmente nos cedeu o documentário “Aracati”, ainda a ser lançado.




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